segunda-feira, 30 de março de 2020

O Enganador

Sísifo é o mito grego que trata do ser humano que se recusa a morrer, contrariando a lei natural da vida. Sísifo era um ladrão que chegou ao reino dos mortos propositadamente sem as vestes adequadas, tendo sido autorizado a voltar ao mundo dos vivos para resolver o problema. Por ter enganado novamente os deuses não retornando ao seu destino final, foi condenado impiedosamente a rolar um bloco de pedra montanha acima. Mal chegado ao cume, o bloco rola montanha abaixo. Sísifo recomeça repetitivamente sua sina de rolar a pedra montanha acima.
Permanecendo ou não no reino dos mortos, Sísifo continua sendo o ladrão, cuja vida desonrada se perpetua como um solerte enganador. Sísifo é o ser humano que desesperadamente luta contra a morte, no seu direito de viver como proprietário de seu destino. Engana a morte como todo ser humano que cuida de sua saúde. Porém, sua condição de ladrão nem sempre está presente no ser humano. Só alguns que acreditam poder sempre enganar os outros, que, mesmo protegidos pelo anonimato, abrigados por estratégias que os escondem do escárnio público e distantes do julgamento coletivo rolarão suas pedras na consciência culposa.
Bastaria a Sísifo ser apenas aquele que rejeita a morte, porém ele é o ladrão, aquele que rouba e que retira o que não lhe pertence; o imoral que não respeita o alheio. Encontramos Sísifo também naqueles que foram pegos pela Operação Lava Jato. São pessoas que pensam enganar a morte, isto é, que acreditam que ficarão impunes, que não perderão o poder e que roubaram por uma “boa causa”. Os que ainda não foram pegos pelo Justiça, e mesmo que não o sejam, portanto, que simbolicamente não morreram por se encontrarem em evidência, continuam ladrões. Não perdem a empáfia, mas continuam ladrões. Alguns detêm o poder temporal, mas continuam ladrões.
São ladrões do dinheiro público, da esperança do povo e da vida dos que nasceram para experimentar seu direito à liberdade, a sua autonomia e a alcançar prosperidade. Os ladrões do dinheiro público vão rolar suas pedras na consciência, cuja dinâmica não depende de tribunais ou de processos legais, pois alcança a todos indistintamente. Sísifo se encontra presente tanto nos marginais que cometem pequenos delitos e como nos que ambicionam o poder, locupletando-se nele, acreditando-se arautos e missionários defensores dos mais pobres, que nunca lhes deram procuração.
Mesmo ladrões, encontram justificativas em suas consciências para não se considerarem como tais. Evocam a defesa do povo sofrido, novamente enganando alguns e a si mesmos. Mas não enganam as leis da Vida, que sempre oferece a cada um de acordo com o uso ético de suas habilidades. Deixar de rolar a pedra requer humildade, grandeza de espírito e consciência da própria humanidade. Aí sim, poderão deixar de serem ladrões.

segunda-feira, 23 de março de 2020

A angústia da alma

O ser humano é necessariamente o realizador responsável pelo próprio destino, cuja ignorância a respeito de si mesmo provoca-lhe dificuldades e, ao mesmo tempo, o aprendizado para prosseguir sua jornada. A enorme quantidade de opções e escolhas por onde trilhar nos caminhos da vida atestam que seu destino não está previamente traçado, nem o ser humano é títere de um deus mecanicista.
Em geral, ele busca o poder, o prazer ou a transcendência a fim de atender ao inexorável impulso para viver. Mesmo sem saber para que vive e qual o significado de sua vida, segue quase inconscientemente atendendo ao anseio coletivo do meio em que é educado. Nesta inconsciência, adquire uma angústia que se enraíza em sua essência e que lhe corrói lentamente a mente, entristecendo-o. Em sua luta contra a angústia, adquire o poder efêmero e sem sentido; para esquecê-la, nega-a entorpecendo os sentidos com o prazer barato; tenta fugir dela pela fé pueril, aceitando crenças superficiais que o levam a um vazio maior ainda.
Sua angústia solapa sua consciência oferecendo-lhe a riqueza e a ostentação, ambas de uso limitado e com o enorme potencial de adiar seu amadurecimento para o entendimento do sentido da própria vida. Vive um mundo de máscaras e de personas que dominam sua verdadeira identidade e singularidade essencial, provocando-lhe uma vida inautêntica. A angústia da alma é um tema que permanece no indivíduo, geralmente sem dela se dar conta, requerendo cura.
Entre os fatores que contribuem para a permanência da angústia da alma encontra-se a adoção a um modelo mecanicista de pensar e agir, tornando o ser humano escravo de conformidades que o atrasam e anulam suas aspirações transcendentes. Sua impotência ante a morte, não compreendendo seu significado nem aceitando a finitude do personagem que criou para si mesmo e que o representa no mundo, responde também pela manutenção da angústia.
Não é raro encontrar-se pessoas bem-sucedidas, vivendo confortavelmente, com excelente patrimônio e desfrutando os prazeres da vida apresentando uma angústia lancinante e buscando meios inadequados para resolvê-la. Muitos se viciam em drogas lícitas ou ilícitas, quando não apresentam doenças graves ou sérios transtornos psíquicos. Tem-se o exemplo dos poderosos empresários e políticos que se perderam na corrupção, denunciados pela Operação Lava Jato demonstrando que a angústia da alma só pode ser resolvida quando ela própria se conhecer e se perceber tão divina quanto enxerga seus mitos religiosos.
Para os que se encontram em angústia, recomenda-se uma vida simples, um trabalho produtivo e ético, uma família alimentada por afetos, um laser sem sofisticações e uma espiritualidade madura e preenchida de atitudes renovadas. Sair da angústia é se tornar uma pessoa humana, espiritualizada e profundamente comprometida com o bem-estar pessoal e coletivo.

segunda-feira, 16 de março de 2020

Religiosidade

O humano é um ser respondente que constrói uma personalidade como reação ao seu movimento interno para realizar a vida. Em sua personalidade constam adições de ideias e crenças que buscam reduzir a tensão provocada pelo impulso psíquico que lhe é inerente. A adoção e prática de uma religião é uma dessas opções, talvez a mais sedutora, para aplacar a tensão gerada por sua dificuldade em compreender esta força interior que lhe exige inexoravelmente viver.
São muitas opções, quantas são as religiões, cuja importância está em também permitir a sobrevivência e o equilíbrio psíquico do ser humano. Sem elas, a alma tende a se perder em diferentes modos de alienação, sobretudo pelo entorpecimento dos sentidos, o que revela se tratar de uma força irrefreável. Quanto mais o ser humano descobre sua religião pessoal, melhor compreende sua existência e seu destino.
Quando o ser humano não adota uma religião, necessariamente apresenta uma filosofia que lhe corresponde em valor e a ela entrega seus melhores argumentos em substituição à fé. Esta substituição se deve ao distanciamento gradativo entre as doutrinas religiosas e o conhecimento humano, que cada vez mais o põe em contato com a percepção direta do significado da vida e da realidade em que se situa.
Há diferentes modos de expressão da religiosidade humana, sendo o mais comum o que segue regras e rituais que pretendem elevar a pessoa a uma transcendência que produza o sentimento profundo de realização interior. Neste estado, em comunhão com sua mais íntima essência, o ser humano consegue ter as respostas que tanto busca em sua vida para atender sua designação espiritual.
Religiosidade é atitude para com o sagrado, a serviço do bem-estar pessoal e coletivo que irmana todos os seres humanos me torno de um ideal comum. Longe de ser meio de salvação ou de separação, torna-se motivo de comunhão e elevação espiritual quando considera o amor, a paz e a harmonia na Terra como máximas a serem seguidas. Ao propor a imortalidade e a singularidade do ser humano, as religiões atingem a mais íntima essência da criatura humana, reduzindo sua angústia ante a morte.
São as religiões que produzem certos ícones que servem de exemplo para a humanidade, pois sugerem ética, compaixão e espiritualidade em seus atos. Com eles, aprendemos que a vida encontra seu sentido e significado quando o outro é compreendido em sua diversidade, amado por sua identidade singular e respeitado em sua condição de criatura divina. Um destes bons exemplos encontramos em Irmã Dulce, cuja religiosidade transcendeu os muros da própria religião que adotou, levando às pessoas a certeza de que o bem faz bem e produz sentido para a vida. O reconhecimento público de sua vida, de sua obra e de sua fé traduz a importância de sermos pessoas mais solidárias, portanto, mais humanizadas.

segunda-feira, 9 de março de 2020

Diáspora da igualdade

O filósofo canadense H. M. McLuhan, morto em 1980, além de ter cunhado o termo Aldeia Global, antecipou em muitos anos o fenômeno tecnológico da Internet, que instantaneamente interligaria os seres humanos. Ele só não imaginou que, estimulada pela internet, a mobilidade, pelo desejo do ser humano em experimentar as mesmas condições que seus semelhantes, geraria novas diásporas no mundo, criando cada vez mais refugiados.
A belíssima música, Diáspora, composta e cantada por Marisa Monte, Arnaldo Antunes e Carlinhos Brown, atesta este triste fenômeno. A música parece uma súplica em favor dos refugiados, cujo problema comove o mundo. Feliz inspiração desse maravilhoso trio, cuja sensibilidade toca a alma de quem consegue se colocar no lugar daqueles que se veem sem um lar, sem uma pátria ou que se encontram sem família em terras estrangeiras. Lembra-nos a saga dos judeus, que, mesmo perseguidos e sofrendo, conseguiram, ao se espalharem pelo mundo, disseminar inúmeros conhecimentos para a Humanidade. A música dos Tribalistas, como uma oração, é dirigida a Deus, questionando onde se encontraria, pois permite tamanho sofrimento porque passam os refugiados.
Eles anseiam por um lugar, como um refúgio, pois foram expatriados e expurgados sem direito a ter direito algum; apenas querem tão somente ser acolhidos e chamados de irmãos. Em geral, o fenômeno é causado por ditadores ou governos irresponsáveis e insensíveis que os expulsaram, cujo regime serve a poucos, sacrificando muitos. Ou saem em busca de outra opção além da morte, ou são por ela atingidos. São filhos da Terra, sem direito à terra ou de ocupar um lugar nela.
Por outro lado, parece que o fenômeno está associado à necessária quebra da ideia de raça pura, portanto em favor da consciência de que todos somos seres humanos, de que temos os mesmos direitos à dignidade de pertencimento e de que vivemos em um planeta desigual. A mistura de culturas se impõe contra a eugenia, a criação de fronteiras que separem pessoas ou à valorização desta ou aquela cultura em detrimento da pessoa humana. O ser humano necessita se enxergar em seu semelhante, vendo-o com a mesma lente com que a si mesmo percebe e se julga.
Creio que a resposta não vem diretamente de Deus, mas de sua mais importante criatura, o próprio ser humano que ainda necessita se humanizar. É nesta hora que é perceptível o quanto existe de pessoas que desejam religiosamente se espiritualizar sem, no entanto, conseguir se humanizar. Sim, a resposta deverá ser dada pelos seres humanos, cujo acolhimento e devolução da dignidade ao outro é um dever humanitário.
Refugiados são todos, mesmo em seu próprio lar, em sua pátria e em seu planeta, quando não se sentem pertencentes pela falta de um sentido e de um significado existencial ao não reconhecerem o outro como irmão ou ao julgá-lo sumariamente como inimigo.


segunda-feira, 2 de março de 2020

O Carro do Sol

Conta-se, na mitologia grega, que o jovem Faetonte indagou a sua mãe sobre quem era seu pai. Com muito orgulho, ela afirmou ser o deus Hélio e que morava em um palácio extremamente iluminado. Sabendo de sua realeza, foi em busca de suas raízes. Ao chegar ao palácio, foi recebido com tamanha alegria que o pai lhe concedeu um desejo. Como Hélio conduzia o Carro do Sol que atravessava a abóbada celeste iluminando a Terra e fazendo o dia acontecer, seu filho pediu para ocupar seu lugar. Como não lhe podia negar o pedido, advertiu o filho que a tarefa era difícil, senão impossível. Hélio ponderou que ele era muito jovem, imaturo e inexperiente no serviço. Disse ainda, que os cavalos que iria conduzir eram muito irascíveis e o terreno extremamente perigoso, íngreme e cheios de abismos. Mesmo assim, Faetonte assumiu a condução do Carro do Sol. Não precisou ir muito longe, pois os cavalos sentiram que eram conduzidos por mãos frágeis e vacilantes. Em pouco tempo, a quadriga deixou a rota e foi espalhando fogo no firmamento, que logo atingiu a terra, incendiando-a. O desastre só não foi maior porque Zeus, temendo uma grande catástrofe, desferiu um certeiro raio sobre Faetonte, fulminando-o instantaneamente. No túmulo de Faetonte consta que alia jazia quem morreu em gesta gloriosa.
O mito retrata a incompetência e imaturidade dos que pensam governar bem, quando querem deixar seu nome para a posteridade ou que o fazem para eleger um sucessor que mantenha o poder dentro de um partido. Atendem aos próprios interesses e alardeiam feitos superficiais. São governantes que não compreendem que o poder não lhes pertence e que são funcionários públicos a serviço do progresso geral, mas, por ignorância, acreditam que são nobres e proprietários do palácio real.
Por vezes utilizam prerrogativas legais, mesmo sabendo que irão prejudicar a sociedade, simplesmente por motivos políticos partidários, atuam para a plateia, à espera de aplausos e de terem seus nomes inscritos na galeria dos heróis salvadores. São como Faetonte, incompetentes e pueris só por querer deixar uma imagem de benfeitores. São perdedores, pois o poder passa e não deixa marcas no coração de ninguém. Serão fulminados pela história, que não polpa os que tripudiam sobre a inteligência e a mentalidade coletiva.
O carro do sol é inexorável e necessita de mãos hábeis para conduzi-lo, pois contempla levar uma sociedade alquebrada pela irresponsabilidade de outros que, fazendo o mesmo, deixaram um rastro de pobreza, insegurança e sobretudo um sistema educacional falido, onde o professor é refém de alunos famintos, perdidos e empoderados contra a qualidade do ensino. Quando será que os governantes vão aprender a fazer o mínimo necessário, com maturidade e competência, saindo depois, no anonimato, consciente de que deu o seu melhor?